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sábado, 5 de junho de 2010

A SOBERANIA E A AUTORIDADE DE DEUS

(Resenha da lição 6, do segundo trimestre da EDB comentada por Claudionor de Andrade)

Por Professor Anderson Costa

Logo na desapontadora introdução da ‘lição’, Claudionor de Andrade escreve:

“... A passagem talvez não seja muito apreciada pelos calvinistas extremados por mostrar que Deus, conquanto absoluto e inquestionável, não é arbitrário”.

Bom, antes de tudo quero dizer que assim como a soberania de Deus é fundacional para a teologia cristã em geral, a doutrina da eleição é fundacional para a soteriologia cristã em particular. A doutrina mantém que na eternidade, antes do universo ser criado, Deus selecionado um numero imutável de indivíduos específicos para a salvação em Cristo, e ele assim o faz sem basear sua decisão sobre a fé e obras, ou qualquer outra condição, nos indivíduos assim selecionados. Antes do que escolher um individuo por causa de qualquer fé prevista, o individuo eleito recebe fé precisamente porque Deus já o escolheu.

Contra os calvinistas, (certamente não afirmo o “calvinismo” simplesmente porque João Calvino o ensinou, mas porque ele é bíblico, e me oponho ao “Arminianismo” porque é anti-bíblico; estou usando esses termos somente por conveniência) os arminianos se opõem a essa doutrina bíblica; pelo contrario, eles transformam a eleição divina numa reação de Deus ao que escolhemos, de forma que nosso escolher a Cristo é logicamente anterior ao escolher de Deus por nós, com o resultado de que meros seres humanos determinam a vontade de Deus na salvação. Contra essa heresia humanista, Paulo declara: “Sabemos, irmãos, amados de Deus, que ele os escolheu”. É Deus quem soberanamente escolhe o eleito, de forma que Paulo diz “ele os escolheu”, e não “ ele aprovou a vossa escolha”. Se Deus não faz nada mais do que aceitar nossa escolha, então ele não nos escolhe em nenhum sentido real do termo. Mas Jesus diz: “Vocês não me escolheram, mas eu os escolhi” (João 15.16). Portanto, o Arminianismo é falso.

Se a eleição diz respeito completamente a Deus sem referencia a qualquer condição encontrada na pessoa, então a decisão de Deus seria arbitraria. Portanto para que uma decisão não seja arbitraria, Deus deve basear sua eleição na decisão do homem. Para Claudionor, um Deus que os calvinistas pregam que é absolutamente soberano é também um Deus arbitrário.

Se por arbitrário queremos dizer “existir ou acontecer aparentemente de forma aleatória ou por chance, ou como um ato de vontade caprichoso e desarrazoado” (Merriam-Webster´s Collegiate Dictionary, Tenth Edition; Springfild, Massachusetts:

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Merriam-Webster, Incoporated, 2001.), então certamente o calvinista negaria que Deus é arbitrário, ou a eleição é arbitrária. Mas essa é a ultima definição no Merriam-Webster. As definições anteriores incluem: “depender de discrição individual (como de um juiz) e não fixada por lei... não restringida ou limitada no exercício do poder: regular por autoridade absoluta”. Se usarmos essas definições, então o calvinista pode prontamente afirmar que a eleição é “arbitrária”, visto que Deus deveras governa “por autoridade absoluta”, e a eleição é deveras baseada a, sua “discrição individual”. Paulo escreve: “Deus tem misericórdia de quem ele quer, e endurece a quem ele quer” (Romanos 9.18), e portanto a eleição é “arbitraria”, mas não no sentido pejorativo.

Para Claudionor, um Deus absolutamente soberano é também um Deus randômico, caprichoso e desarrazoado. Se Deus faz algo com você sem primeiro te “pedir”, então ele é randômico, caprichoso e desarrazoado. Um termo para descrever essa posição é blasfêmia. Talvez Claudionor esqueceu que ele está escrevendo um comentário cristão. Em contraste, a Escritura ensina que Deus é deveras “arbitrário” no melhor sentido do termo – isto é, ele “governa com autoridade absoluta” e ele faz todas as coisas por sua “discrição individual”. Ele não tem que pedir sua permissão para fazer algo com você que ele deseje.

Já no item três do primeiro tópico, Claudionor escreve:

“Assim como o oleiro tem poder sobre a argila, de igual modo trata-nos Deus consoante à sua soberania”.

Ora, o oleiro não pergunta para o vaso “eu posso fazer uma ‘alça’ em você?”; ele faz conforme lhe apraz, conforme lhe tem vontade. Aqui ele tem a ousadia de escrever que Deus nos trata com “a sua autoridade inquestionável” como ele mesmo o defini na palavra chave. Isso não pode ser verdade dada a sua posição, pois em seguida ele diz:

“levando sempre em conta, naturalmente, o livre-arbítrio com que Ele nos dotou”!

Mas se Deus é como o oleiro e exerce “a sua autoridade inquestionável” como pode levar em conta o meu livre-arbítrio (aparente que o que ele quer dizer por livre-arbítrio é a capacidade de escolher), Claudionor consegue contradizer a Escritura, contradizer a si mesmo e blasfemar contra Deus.

Eu concordo que a soberania de Deus contradiz a liberdade humana, mas onde a Escritura ensina a liberdade humana? Eu nego que os seres humanos sejam livres no sentido de serem livres de Deus; isto é, eu afirmo com a Escritura que Deus possui e exerce controle absoluto e constante sobre a vontade humana. Se Claudionor afirma a vontade humana, então ele deve prová-la pela Escritura.

Quero distinguir entre liberdade humana e responsabilidade humana – elas são duas coisas diferentes. Muitas pessoas assumem que a responsabilidade humana depende da liberdade humana – isto é, elas pensam que os humanos são responsáveis porque são livres, e que se eles não são livres, então eles não podem estabelecer isso?

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Isso é quase sempre assumido sem argumento, mas eu rejeito essa premissa injustificada. Pelo contrario, eu afirmo que embora a soberania contradiga a liberdade humana, e que a Escritura nunca ensina a liberdade humana, a soberania divina não contradiz a responsabilidade humana, e que a Escritura deveras ensina a responsabilidade humana.

Entendo que Claudionor e muitos outros como ele pensam que há uma contradição entre a soberania de Deus e a responsabilidade humana, pois eles assumem que a responsabilidade humana requer que o homem tenha liberdade de escolha, ou livre-arbítrio; contudo, se Deus tem controle absoluto, então o homem não é livre, e portanto, a soberania divina e a responsabilidade humana contradizem uma a outra.

Mas esse processo de raciocínio é fatalmente defeituoso. Uma grande parte do problema resulta de uma definição imprecisa de “RESPONSABILIDADE”. O que se quer dizer por uma pessoa ser “responsável” por suas ações? A primeira definição para “responsável” no Webster´s New Word College Dictionary é “esperado ou obrigado a prestar contas (por alguma coisa, para alguém); que exige resposta; que dá resposta”. A despeito de ser o homem é ou não livre, o homem é “esperado ou obrigado a prestar contas” por suas ações a Deus? Sim, pois a Escritura diz: “Pois Deus trará a julgamento tudo o que foi feito, inclusive tudo o que está escondido, seja bom, seja mau” (Eclesiastes 12.14). Deus recompensará o justo e punirá o ímpio; portanto, o homem é responsável. O que parece para muitos como um “conflito irreconciliável” é por meio disso resolvido.

O homem é responsável precisamente porque Deus é soberano, visto que ser responsável significa nada mais do que ter de prestar contas pelas ações de alguém, que será recompensado ou punido de acordo com um determinado padrão de certo ou errado. Isso tem tudo a ver com se Deus decretou um juízo final, e se ele tem o poder e autoridade para força tal decreto, mas isso não depende de qualquer “livre-arbítrio” no homem. De fato, visto que a responsabilidade humana depende da soberania divina, e visto que a soberania divina deveras contradiz a liberdade humana (não a responsabilidade humana), isso significa que o homem é responsável precisamente porque o homem não é livre. (no que diz a Deus, com já afirmei).

A Bíblia ensina que Deus controla todas as decisões e ações humanas. A autonomia é uma ilusão. O homem é responsável porque Deus recompensará a obediência e punirá a rebelião, mas isso não significa que o homem é livre para obedecer ou se rebelar. Romanos 8.7 explica: “A mentalidade da carne é inimiga de Deus porque não se submete à Lei de Deus, nem pode fazê-lo”. A Bíblia nunca ensina que o homem é responsável por seus pecados porque ele é livre. Isto é, o homem é responsável pelos seus pecados não porque ele é livre para agir de outra forma; esse versículo diz que ele não é livre. Que o homem é responsável tem a ver com se Deus decide considerá-lo responsável; não tem nada a ver com se o homem é livre. O homem é responsável porque Deus decidiu julgá-lo por seus pecados. Portanto, a doutrina da responsabilidade humana não depende do ensino anti-bíblico do livre-arbítrio, mas da soberania de Deus.

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A questão se torna imediatamente uma de justiça, ou se é justo para Deus punir aqueles a quem ele condenou. Paulo antecipa essa questão em Romanos 9.19, e escreve: “Mas algum de vocês me dirá: ‘Então, por que Deus ainda nos culpa? Pois, quem resiste a sua vontade’”. Ele responde: “Mas quem é você, ó homem, para questionar a Deus? “Acaso aquilo que é formado pode dizer ao que o formou: ‘Por que me fizeste assim?’” (v.20). Isso é equivalente dizer que Deus é “arbitrário” – ele governa com autoridade absoluta; ninguém pode frustrar seus planos, e ninguém tem o direito de questioná-lo. Isso é verdade porque Deus é o criador de todas as coisas, e ele tem o direito de fazer tudo o que quiser com a sua criação (v.21).

Pedro diz com respeito àqueles que rejeitam a Cristo: “Os que não crêem tropeçam, porque desobedecem à mensagem; para o que também foram destinados” (1 Pedro 2.8). Enquanto que os eleitos se regozijam nessa doutrina, os não-eleitos a detestam, mas de qualquer forma, esse é o caminho e não há nada que alguém possa fazer sobre isso.

É somente por causa do raciocínio pobre que o assunto da justiça é usado contra a doutrina da reprovação. Em seus vários termos, a objeção equivale ao seguinte:

1. A Bíblia ensina que Deus é justo.

2. A doutrina da reprovação é injusta.

3. Portanto, a Bíblia não ensina a doutrina da reprovação.

Contudo, a premissa 2 tem sido assumida sem garantia. Por qual padrão de justiça uma pessoa julga que a doutrina da reprovação é justa ou injusta? Em contraste ao acima, o cristão raciocina da seguinte forma:

1. A Bíblia ensina que Deus é justo.

2. A Bíblia ensina a doutrina da reprovação

3. Portanto, a Doutrina da reprovação é justa.

O ponto essencial é se a Bíblia afirma a doutrina; uma pessoa não deve assumir se ela é justa ou injusta de antemão. Visto que Deus é o único padrão de justiça, e visto que a Bíblia afirma a doutrina da reprovação, isso significa que a doutrina da reprovação é justa por definição.

Primeiramente deixe-me perguntar – não temos todos nós que admitir uma providência soberana e a mão de Deus, quanto aos meios pelos quais entramos neste mundo? Àqueles que pensam que depois somos deixados a nosso próprio livre-arbítrio para escolher isto ou aquilo ao dirigirmos nossos passos, têm que admitir que a nossa entrada neste mundo não era de nossa própria vontade, mas sim que Deus teve que escolher por nós. Tínhamos qualquer coisa a ver com isso? Não foi Deus mesmo quem determinou quem seriam nossos pais e onde nasceríamos? Não poderia Ele ter me feito nascer num lar pagão onde teriam me ensinado a prostrar-me diante de falsos deuses, tão facilmente quanto como dar-me uma mãe piedosa, que cada manhã e noite dobrasse os seus joelhos e orasse em meu favor, ou não poderia Ele, se assim o

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quisesse ter me dado um pai libertino, de cujos lábios desde cedo eu tivesse ouvido palavras obscenas, sujas e terríveis Não foi graças a providência de Deus que tenho uma sorte tão feliz, que minha mãe era Sua filha, e tratou de criar-me no temor do Senhor?

Os arminianos, pelo menos aqueles que buscam seguir a tradição metodista (que o que não parece ser a de Claudionor), em linhas gerais, concordam com a análise dos reformadores. Sem a obra do Espírito, ninguém pode escolher o bem. Mas eles crêem que o Espírito opera uma obra de preparação no coração de cada pessoa, a obra da graça preveniente. Esta graça restaura o poder do livre-arbítrio, que é a liberdade de indiferença. Esta graça equilibra o peso do pecado original e o peso da natureza caída, corrupta. Assim, o pecador tem a capacidade de escolher igualmente entre receber ou rejeitar o evangelho. Para os reformadores, a graça preveniente resulta na salvação da pessoa, inevitavelmente, mas para os arminianos, não. A graça preveniente serve para garantir a autonomia da pessoa. Mas resta um problema: a Escritura realmente ensina a existência da graça preveniente neste sentido?

Os reformadores, como Lutero e Calvino, responderam que após a queda a vontade se tomou escrava do pecado. A posição dos reformadores tem o apoio das Escrituras. Embora criados com a verdadeira liberdade, Adão e Eva perderam essa liberdade, após a queda. A partir deste acontecimento, os seres humanos perderam não a capacidade de escolher, que é inseparável da natureza humana, mas a verdadeira liberdade - "a capacidade de viver em obediência total a Deus".

Segundo o ensino bíblico, nossa natureza corrupta escolhe, livremente, fazer o mal e rejeitar a vontade e a lei de Deus. O homem peca inevitavelmente, por causa de sua natureza pecaminosa, mas peca livremente, sem coerção, porque sua natureza quer pecar, gosta de pecar, não quer agradar a Deus e não pode obedecer a Deus. Sem a obra poderosa e irresistível do Espírito Santo, o homem não pode fazer nada em relação à salvação.

O pecado corrompeu o intelecto, as emoções, a vontade e até mesmo o corpo (Rm 7.18) do ser humano. Os seres humanos estão espiritualmente mortos em seus delitos e pecados, "fazendo a vontade da carne e dos pensamentos", sendo, "por natureza, filhos da ira" (Ef 2.1-3). A depravação total significa justamente isto: a contaminação de todas as esferas da humanidade pelo pecado. Ainda que o homem não seja absolutamente mau – ele não é tão mau quanto poderia -, ele é extensivamente mau. Todo o seu ser está contaminado pelo pecado, inclusive sua vontade, que agora é escrava deste maldito vício. Em decorrência disso, o homem tomou-se positivamente mau, incapaz de fazer qualquer bem, no que se refere ao seu relacionamento com Deus, mas também incapaz de, por suas próprias forças, aproximar-se de Deus.

Na criação, o homem tinha a posse peccare (capacidade para pecar) e a posse non peccare (capacidade para não pecar). Mesmo nesse estado, a assistência divina estava disponível para ele. A "primeira graça" da qual Agostinho fala é a da chamada adjutorium. Essa assistência graciosa capacitava Adão a continuar em seu estado

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original, mas não o compelia a perseverar nele. Adão tinha a posse non peccare (capacidade para não pecar), mas não a non posse peccare (incapacidade para pecar).

Deus possui a non posse peccare. Isto é, para Deus não é possível pecar. Deus não é apenas perfeito em sua bondade e justiça, mas ele é também imutável. A criatura não foi criada imutável. Ela pode mudar e passa por mudanças. No céu, em nosso estado glorificado, seremos dotados com a non posse peccare. Em nosso estado glorificado, seremos declarados não apenas sem pecados, mas também incapazes de pecar. Mas nossa incapacidade futura para o pecado não se dará porque Deus nos fará divinos, mas porque ele nos preservará num estado de perfeição. Com relação a isso, o céu não será simplesmente uma questão de Paraíso recuperado. O céu será um lugar melhor do que aquele que Adão gozou no Éden antes da queda.

Seguindo o apóstolo Paulo, vemos um elo entre o pecado e a morte. Todos os homens morrem porque todos têm pecado. Na criação, Adão foi feito com aposse mori e aposse non mori. Isso refere-se à capacidade para morrer e para não morrer. Adão não foi feito intrinsecamente imortal. Ele continuaria a vi ver apenas enquanto se refreasse do pecado. Ele poderia ou não morrer dependendo da sua resposta ao comando de Deus. Depois da queda, a morte entrou no mundo e todos os descendentes de Adão foram colocados sob a sua maldição. Parte do pecado original é que o homem caído agora tem a non posse non mori (incapacidade para não morrer). Os casos especiais de Enoque e Elias são exceções tomadas possíveis pela graça especial dada por Deus.

Há vários textos nas Escrituras que nos ajudam a vislumbrar uma ordem no plano de salvação (cf. Jo 1.12; 3.3-5; Ef 1.13 lJo 3.9; 5.16), mas é Romanos 8.28-30 "que projeta uma forte luz sobre esta questão". Nesta passagem, o apóstolo apresenta vários elementos da salvação em uma ordem lógica. Esta ordem das etapas da salvação se chama ordo salutis. "Pois aqueles que de antemão conheceu, também os predestinou para serem conformes à imagem de seu Filho, a fim de que seja o primogênito entre muitos irmãos. E aos que predestinou, também chamou; aos que chamou, também justificou; aos que justificou, também glorificou" (NVI). Neste texto há uma progressão lógica, da eleição até a glorificação, tudo procedendo do eterno decreto de Deus para justificar os eleitos.

A ordo salutis descreve "em sua ordem lógica e também em sua inter-relação, os vários movimentos do Espírito Santo na aplicação da obra de redenção. A ênfase não recai no que o homem faz, ao apropriar-se da graça de Deus, mas no que Deus faz, ao aplicá-Ia". A eleição, a predestinação, o chamado, a justificação e a glorificação aparecem como uma unidade completa. Chamados de "a corrente dourada" pelos teólogos puritanos, os diversos elos ou elementos da salvação não podem ser separados.

A expressão "aqueles que" ([hous]), no início da frase, indica os que são predestinados, ou seja, eleitos. Esta predestinação tem como alvo o resultado final da salvação: a renovação do ser humano à imagem do Cristo glorificado. É necessário, para a realização do alvo determinado por Deus, que as pessoas de antemão

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conhecidas, passem por todos os passos no processo. Ninguém, logicamente, pode ser incluído na primeira fase sem também chegar à fase final. No versículo 30, a NVI inclui "também", para mostrar a força do grego, de que todos os incluídos na etapa anterior, também irão participar da fase seguinte. O advérbio "também" representa (toutous), que significa literalmente "aqueles", e tem referência "aos que" (hous). A idéia é que todos aqueles, e ninguém mais, que fizeram parte da fase anterior, também fazem parte da próxima etapa.

A expressão "de antemão conheceu", no versículo 29, é (proginosko), que significa "conhecer antes", a forma verbal de "presciência". No tópico 2 item 3, Claudionor interpreta que a palavra signifique algo como olhar para o futuro, para se ver o que acontecerá, como se Deus estivesse assistindo a um vídeo do futuro, para ver o que o ser humano faria e assim, ajustar o seu plano para coincidir com as escolhas humanas. Ao contrário, todo peso da idéia de "conheceu", aqui, tem como pano de fundo o uso do vocábulo [yāda] no Antigo Testamento, que está por trás do conceito usado por Paulo, neste texto. Como vimos antes no hebraico o verbo "conhecer" [yāda] expressa mais do que mera cognição intelectual. Ele denota um relacionamento pessoal de cuidado e afeição. '''Conhecer' é usado em um sentido praticamente sinônimo de 'amar'''; "'aos que de antemão conheceu' é considerada uma expressão que significa 'aqueles sobre os quais Ele colocou o seu interesse' ou 'aqueles que Ele conheceu desde a eternidade com deleite e afeição distinguidores'''. Por isso, presciência é o "soberano amor distinguidor".

A palavra aparece outra vez em l Pedro 1.20, em referência a Cristo, e fica evidente que o texto não está falando apenas de um conhecimento intelectual de algo que Cristo faria no futuro, mas sim no sentido de ser preordenado. Então, quando o mesmo autor emprega a forma substantiva, (prognosis [presciência]) no versículo 2 que Claudionor cita, entendemos que isto também contém o sentido de relacionamento. "Quando aplicado ao conhecimento que Deus tem das pessoas (seja de Jesus ou de seu povo), 'presciência' é mais que apenas saber de antemão, pois envolve escolha ou determinação também".

Portanto, se Deus "conhece" as pessoas, ele estabelece um relacionamento com elas. Ele sabe o que se passa com elas. E quando se diz que ele "conhecia" os filhos de Israel no deserto, isto significa que ele cuidava e se preocupava com eles. Na verdade, Israel foi o único povo entre todas as famílias da terra a quem Yahweh "conheceu", ou seja, amou, escolheu, estabelecendo com eles uma aliança: "Não vos teve o SENHOR afeição, nem vos escolheu porque fôsseis mais numerosos do que qualquer povo, pois éreis o menor de todos os povos, mas porque o SENHOR vos amava e, para guardar o juramento que fizera a vossos pais, o SENHOR vos tirou com mão poderosa e vos resgatou da casa da servidão, do poder de Faraó, rei do Egito" (Dt 7.7-8). O significado de "presciência" no Novo Testamento é similar, "Deus não rejeitou o seu povo [Israel], o qual de antemão conheceu", isto é, a quem ele amou e escolheu (Rm 11.2). A única fonte da eleição e da predestinação é o livre amor de Deus.

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O desenvolvimento do tema do relacionamento pessoal entre Deus e o homem, no Novo Testamento, revela que é por meio de Jesus Cristo que essa relação é concretizada. Este relacionamento também está enraizado em nossa eleição.

Em Mateus 28.20 Jesus afirmou aos discípulos que sua presença junto deles não estava apenas relacionada com sua encarnação, mas que continuaria para sempre. Claro que isso se refere à presença de Jesus num sentido espiritual, já que ele não permaneceria fisicamente na Terra. Mas, ainda assim, a promessa não era apenas uma metáfora. Ela representava uma realidade concreta. A fé cristã não seria somente mais uma religião. Essencialmente, ela seria um relacionamento entre uma pessoa e Jesus Cristo.

A natureza deste relacionamento com Deus é indicado por Jesus, em João 14.23, quando ele disse: "Se alguém me ama, guardará a minha palavra; e meu Pai o amará, e viremos para ele e faremos nele morada [mone]”. A palavra mone significa "ficar, permanecer ou assumir residência". É dentro de nossa residência, nossa casa, que experimentamos o lado mais Íntimo da vida. Ali é o lugar do mais profundo amor, onde partilhamos nossas vidas com nossos familiares no nível mais Íntimo. O fato de que Cristo habita em seu povo mostra a profundidade de nossa união com ele, o sentido da palavra enfatiza que essa união com Cristo é permanente. O texto visa "a salvação do indivíduo ao invés da salvação universal e escatológica. A salvação consiste em união com Deus e Cristo." No Antigo Testamento. Deus manifestou sua presença no templo. Na nova aliança, a comunidade dos cristãos é a única casa de Deus.

Cristo empregou a analogia da videira para mostrar a natureza orgânica da união com Deus, em João 15.4-5. "Eu sou a videira, vós, os ramos". A união com Cristo é a fonte da vida espiritual, assim como os ramos, unidos à videira, dela recebem a nutrição necessária para sustentar a vida. E como os ramos, quem não estiver ligado à fonte não tem possibilidade de dar fruto. Por outro lado, quem está em Cristo certamente dará o seu fruto.

Nas epístolas de Paulo encontramos um desenvolvimento maior da doutrina de nossa união com Cristo. "em Cristo" é o lema de Paulo. De fato, tudo que temos como cristãos, temos em Cristo. Isso fica nítido em Efésios 1 e 2, onde Paulo nos dá uma lista das bênçãos que os cristãos têm em Cristo. Em Efésios 1.3, as bênçãos espirituais incluem tudo que faz parte de nossa salvação. Tudo isso nós temos (en cristo). A expressão en cristo está no caso dativo, o que aqui indica o lugar ou esfera na qual existe aquilo a que se refere. O sentido do texto é que nós somos incorporados na pessoa de Cristo, nosso representante, desde sua pré-existência, antes da fundação do mundo, até sua exaltação no céu. Entre os benefícios que temos, Paulo menciona a santidade (1.4), a adoção (1.5), a redenção e o perdão dos pecados (1.7), a graça derramada sobre nós (1.8) e a vida espiritual (Ef 2.5). A vida em Cristo é o contrário da morte no pecado. A união com Cristo significa liberdade da morte, ao sermos ressuscitados com Cristo, e inclui a identificação com ele em seu reino celestial. A união com Cristo é tão completa, e todos os elementos da salvação são tão vinculados com a vida de Cristo.

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No mesmo texto, Paulo traça um vínculo entre a união com Cristo e a eleição. A escolha do cristão não é algo abstrato e metafísico, antes, é uma escolha especificamente em Cristo (1.4). A união do cristão com Cristo, que foi realizada "antes da criação do mundo", faz parte do plano eterno de Deus, que realiza tudo segundo a sua vontade (1.11). É significativo o fato de que Paulo usa a expressão "nós" - que no contexto representa Paulo e os destinatários da epístola - para designar os que foram escolhidos. Isso não representa uma classe abstrata e vazia, mas sim uma referência a pessoas específicas. Os membros desta classe foram escolhidos, não apenas a classe. Enfim, nossa união em Cristo é alicerçada na eleição.

O tema da identificação do cristão com a morte e a ressurreição de Cristo é mencionado em outros textos das epístolas de Paulo. "Fomos, pois, sepultados com ele na morte pelo batismo" (Rm 6.4), "estou crucificado com Cristo" (GI 2.19). Somos morto a respeito da lei, sendo assim livres da maldição e culpa da lei, mas somente porque somos um com Cristo Essa é a base de uma nova vida, representada pela ressurreição do cristão com Cristo: "Já não sou eu quem vive, mas Cristo vive em mim" (GI2.20), por isso, "também andemos nós em novidade de vida" (Rm 6.4).

Em Romanos 8.1 a união com Cristo garante que o cristão é livre de qualquer condenação por causa do pecado. Paulo mostrou que em Adão temos morte e condenação, mas através de Cristo temos graça e vida eterna. É nossa união com Cristo que nos confere essas bênçãos. Portanto, agora já não há condenação para os que estão em Cristo Jesus.

A união com Cristo é a base de uma mudança radical na natureza do cristão. Este literalmente se toma uma nova criatura (2Co 5.17). Matthew Henry, ao comentar este versículo, disse que “a graça regeneradora cria um novo mundo na alma, todas as coisas são novas". Nada menos que uma nova identidade é dada a quem está unido com Cristo. De fato, tudo que o cristão precisa para viver a nova vida é providenciado em Cristo (lCo 1.5-7). O fim da alienação, tanto de Deus quanto dos outros homens, vem por causa da realidade concreta do vínculo sobrenatural que o cristão tem com o Deus vivo, vínculo esse realizado na união com Cristo. Em Efésios 1.3-6 vários aspectos da eleição são mencionados, o que dá uma visão mais abrangente da doutrina. Primeiro, no versículo 4, o apóstolo afirma que a eleição é uma escolha feita por Deus, literalmente, "antes da fundação do mundo".

Segundo, como já consideramos, ele nos escolheu. A escolha teve como alvo pessoas específicas, o que fica claro pela expressão "nos escolheu", ou seja, escolheu a Paulo e aos destinatários da carta, e, por implicação, a todos os cristãos. Terceiro, as pessoas são eleitas em Cristo. A eleição é a eleição de um grupo, uma classe de pessoas, todas aquelas que estão em Cristo. Por isso, a eleição tem como alvo a criação de uma comunidade, uma nação santa diante de Deus. Quarto, somos eleitos para sermos filhos adotivos santos e puros de Deus.

A idéia corporativa da eleição é vista na criação da igreja, a noiva de Cristo, como um corpo. Mas a eleição corporativa não anula a eleição de indivíduos. Paulo, escrevendo num texto paralelo à eleição de Jeremias, Gálatas 1.15, diz que ele mesmo

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foi nomeado ou separado para salvação "desde o ventre materno". A palavra [aphorizo] significa colocar ao lado ou separar em dois grupos ou para uma função. Paulo foi separado em dois sentidos: separado para cumprir uma função no serviço a Deus, a pregação do evangelho, o que tornou necessário que ele fosse também separado da esfera do mundo para estar em Cristo. Paulo foi eleito como indivíduo para ser salvo e para realizar a obra para a qual ele fora chamado.

A idéia de predestinação segue a presciência de Deus em Romanos 8.29. O verbo "predestinou" é uma tradução de (proorizo), que significa "decidiu de antemão". "O Deus onisciente determinara tudo com antecedência, tanto as pessoas como as coisas na história da salvação, com Jesus Cristo como o alvo”. A eleição de Deus é confirmada pela própria determinação de Deus de que todos os elementos da salvação que se seguem no texto seriam infalivelmente realizados nas vidas daqueles que ele de antemão conhecera. Sobre esta passagem,

Grudem e sua Teologia Sistemática escreve:

A passagem fala (...) que Deus conhecia pessoas ("aqueles que de antemão conheceu"), não que ele sabia de certos fatos a respeito delas, como o fato de que elas haveriam de crer. É do conhecimento pessoal, relacional que o texto trata aqui: Deus, olhando para o futuro, pensou em certas pessoas relacionando-se salvificamente com ele e, nesse sentido, ele as "conheceu" muito tempo atrás. Quando pessoas conhecem Deus na Escritura, ou quando Deus conhece pessoas, trata-se do conhecimento pessoal que envolve o relacionamento salvador. Portanto, em Romanos 8.29, o significado correto de "aqueles que de antemão conheceu" seria "muito tempo atrás aqueles de quem ele pensou relacionando-se salvificamente consigo mesmo" (v. tb. Rm 11.2). O texto realmente não diz nada a respeito de Deus conhecer de antemão ou prever que certas pessoas haveriam de crer, nem essa idéia é mencionada em qualquer outro texto da escritura.

Assim, "conhecer de antemão" é a determinação de Deus no sentido de agir em prol dos eleitos, selando o seu destino.

Esta ênfase na decisão ou escolha soberana e graciosa de Deus é reforçada pelo vocabulário com o qual a predestinação está associada. Por um lado, ela é atribuída ao "beneplácito" de Deus, à sua "vontade", "plano" ou "propósito" (Ef 1.5, 9, 11; Ef 3.11), por outro lado, já existia "antes da fundação do mundo" (Ef 1.4) ou "antes do princípio das eras" (lCo 2.7; 2Tm 1.9; cf. 1Pe 1.20; Ap 13.8). Paulo menciona dois propósitos da "predestinação" (Rm 8.29). O primeiro é recriar-nos em conformidade com a imagem do seu Filho, nos tornar como Jesus O outro propósito é que Jesus passe a ser "o primogênito entre muitos irmãos", desfrutando, todos da comunhão dessa nova e grande família de Deus.

Quando esse evangelho é anunciado com poder, e as pessoas respondem com a obediência da fé, é evidenciada a eleição destas pessoas. Por outro lado, é claro que muitas pessoas não respondem com fé. Por quê? Qual é a distinção entre aqueles que

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crêem e aqueles que não crêem? Podemos dizer que os incrédulos são assim porque não querem crer? A resposta. É sim. O discurso de Paulo em Romanos 3.10-18 estabelece este ponto. Como se evidencia pela atitude dos judeus em João 8, não se trata de alguém que gostaria de crer, mas de alguém que não tem vontade de crer. É a atitude de pessoas que, por sua própria vontade, não querem receber a mensagem de Jesus. Mas Jesus, na mesma discussão, deixou claro que o desejo de rejeitar sua mensagem tem raízes muito mais profundas. Ele disse que os seus oponentes eram escravos do pecado (Jo 8.34). Como Paulo também escreveu, quem não tem o Espírito de Deus é incapaz de aceitar as coisas de Deus (lCo 2.14).

Como é que, então, pelo menos alguns pecadores conseguem se tornar cristãos? A resposta está na distinção que determina quem crê e quem não crê em Jesus. Em João 10.26, Jesus falou desta distinção, deixando clara qual é a sua natureza. O que William Carey Taylor escreveu a respeito deste texto é interessante ainda hoje. Em seu comentário sobre o evangelho de João, ele disse o seguinte a respeito deste texto:

"Vós, porém, não sois crentes, porque não das minhas ovelhas". Notai bem a linguagem. Jesus não diz: "Vós não sais, por ora, minhas ovelhas porque ainda não sais crentes". Quem escolhe e organiza o rebanho espiritual é o Bom Pastor. É isso que afirma: "A razão porque não sais crentes é porque não sais do número das minhas ovelhas". (...) É a verdade da eleição. A mente da carne quer para o homem a glória e a responsabilidade de todas as magnas decisões. Jesus é o Deus da eleição do seu POVO. Era a maior ofensa possível contra o orgulho do Israel, segundo a carne, concordar em que aquele carpinteiro iria determinar quem faria parte do Sagrado Rebanho do divino Pastor, descrito no Salmo XXIII! "Merece ser apedrejado como o pior blasfemo na história inteira da nação". E vão arranjando as pedras. O fator da escolha divina das ovelhas do rebanho não elimina a doutrina da responsabilidade humana por suas escolhas também, nas suas atitudes para com Deus. A verdade abrange ambas essas escolhas; a de Deus, porém, é primeira, eterna, antes da fundação do mundo. Se isso te ofende porque coloca o homem em segundo lugar, eu pergunto: "Então queres que Deus fique em segundo lugar, depois do pecador?" Por causa do fato da escolha divina, e somente à luz desse fato, é que Jesus pode revelar-Ihes mais tarde: "Tenho outras ovelhas, lá entre os gentios atualmente descrentes, ignorantes mesmo do evangelho. Eu as trarei ao seu tempo. O redil de Israel já não existirá. Os crentes todos, judeus e gentios, - mas apenas CRENTES judeus e gentios - serão por mim constituídos um só rebanho e eu serei o único Bom Pastor Universal". Graças a esse fato, Deus podia animar Paulo, em Corinto, dizendo-lhe daquela cidade dura, vil e incrédula: "Tenho muito povo nesta cidade" (At 18.10) A doutrina é clara. A questão é saber se temos a reverência de crer na veracidade do Senhor ou se torceremos suas palavras para terem sentido diametralmente contrário ao que ele disse.

Aqueles que não crêem em Jesus não o fazem porque não são ovelhas dele. O fato de que as ovelhas crêem é o resultado, portanto, do fato de que eles eram, anteriormente, ovelhas. Eles passaram a ser ovelhas, antes mesmo de crerem, porque

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foram eleitos por Deus. Os eleitos ouvem o chamado especial do bom pastor e respondem, por sua própria vontade, à sua voz.

A soberania de Deus na eleição é ressaltada e exposta com mais detalhes por Paulo, em Romanos 9 a 11. Nesta passagem, Paulo, começa a desenvolver um argumento que chega às raias do paradoxo: por um lado, há um Deus soberano e livre: por outro, temos a responsabilidade de Israel, que rejeitou a promessa do Messias. Podemos dividir o texto de Romanos 9 em duas partes.

Na primeira parte, o apóstolo lida com a incredulidade de Israel (9.1-5). Paulo passa a demonstrar que a rejeição de Israel não é incompatível com a justiça de Deus. O apóstolo demonstra toda a sua tristeza, e seu desejo de ver seu povo salvo como nação é tão intenso, que ele mesmo se colocaria na condição de amaldiçoado por Deus, se tal atitude pudesse favorecer Israel. A expressão é paralela àquela de Moisés, quando do episódio do bezerro de ouro (Êx 32.32), que revela o tipo de amor com que o apóstolo amava seu povo. "O apego a Israel não se devia meramente a laços naturais. Isto é acentuado pelo lugar ocupado por Israel na história da revelação". Isso é destacado pelo fato de Israel possuir todos os privilégios que o qualificariam para receber a bênção da nova aliança: adoção (Êx 4.22), glória (Êx 40.34-38); aliança (Gn 12.1-3), lei (Êx 20), culto (Lv) e promessas ligadas ao reino e ao Messias.

Na segunda parte do texto, a justiça e a fidelidade de Deus são vindicadas (9.6-33). O princípio básico quanto à situação de Israel é anunciado (9.6-8): a palavra de Deus não falhou. porque nem todos os descendentes de Israel são israelitas. Somente os "filhos da promessa”; são considerados descendentes legítimos de Abraão (9.7). Nem todos os descendentes de Abraão são filhos de Deus (9.10-13). Somente Isaque, o filho da promessa que nasceu de Sara, é considerado descendente de Abraão. Da mesma forma, apenas Jacó, irmão gêmeo de Esaú, é considerado descendente segundo a promessa de Deus. Paulo explica o evento sob a perspectiva do propósito soberano de Deus na eleição (9.11 ). No caso de Jacó e Esaú, a eleição de Deus estava estabelecida antes do nascimento dos dois (Ml1.2-3), não se alicerçando sobre atos previstos, tais como obras ou fé. E a eleição é contrastada com a salvação pelas obras, para mostrar que as duas são inconciliáveis: "E ainda não eram os gêmeos nascidos, nem tinham praticado o bem ou o mal (para que o propósito de Deus, quanto à eleição, prevalecesse, não por obras, mas por aquele que chama) já fora dito a ela: O mais velho será servo do mais moço. Como está escrito: Amei Jacó, porém me aborreci de Esaú" (Rm 9.11-13). A eleição de indivíduo, Jacó, é colocada no contexto da eleição escatológica dos cristãos, os "vasos de sua misericórdia, que para a glória preparou de antemão" (9.23). Em outras palavras, Paulo ensina que a eleição de Isaque e de Jacó, e não a de Ismael e Esaú, nada teve a ver com eles, ou com qualquer ação que tivessem feito ou deixado de fazer, mas com a vontade e a soberania “por aquele que chama", para que o "o propósito de Deus, quanto à eleição, prevalecesse" (9.11).

Em seguida, o apóstolo trata da justiça de Deus (9.14-18). Levando-se em conta que a promessa de Deus não falhou, mas cumpriu-se em Abraão, Isaque, Jacó e em sua linhagem espiritual, não seria "o propósito de Deus quanto à eleição" injusto? Paulo responde, citando dois textos do livro de Êxodo. No primeiro, Deus diz: "Terei

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misericórdia de quem eu tiver misericórdia e me compadecerei de quem eu me compadecer" (Êx 33.19). Mais uma vez, Paulo deixa claro o tema da epístola aos Romanos: a ação de Deus em salvar os pecadores não se baseia em justiça, mas sim em misericórdia. Se a base da salvação fosse justiça, estaríamos todos condenados. É isso o que Paulo diz: "Assim, pois, não depende de quem quer ou de quem corre, mas de usar Deus a sua misericórdia" (9.16). Ou seja, a salvação não depende da obra ou do esforço humano, mas sim, "de usar Deus a sua misericórdia". No segundo texto de Êxodo, Paulo recorre ao que a "Escritura diz a Faraó": "Para isto mesmo te levantei, para mostrar em ti o meu poder e para que o meu nome seja anunciado por toda a terra" (Êx 9.16). Quando Deus "endureceu" o coração de Faraó (cf. Êx 7.3, 13; 9.12; 10.1), ele não criou nenhum mal, mas entregou Faraó aos seus maus desejos já existentes, como um ato de julgamento:

Tudo que Deus tem a fazer para endurecer o coração das pessoas é remover as restrições. Ele lhes dá uma corda mais longa. Em vez de restringir sua liberdade humana, Ele a aumenta. Ele deixa que elas façam as coisas de seu próprio modo. Em certo sentido, Ele lhes dá corda suficiente para que elas se enforquem. Não é que Deus ponha sua mão sobre elas para criar o mal novo em seus corações; Ele meramente remove delas sua santa mão de restrição e deixa que façam sua própria vontade.

No entanto, Paulo demonstra que não haverá injustiça, se Deus usar de misericórdia para com uns e reter seu perdão para com outros. Ele não poderá ser acusado de injustiça, porque seu perdão não é dívida, mas graça, que ele distribui a quem lhe apraz. E graça não pode ser cobrada. Em suma, Paulo ensina uma eleição incondicional. Deus escolheu Jacó e rejeitou Esaú, independente de suas ações, ou melhor, de suas obras (9.11-12). A escolha decorre do propósito de Deus, "aquele que chama". Isso quer dizer que Deus escolhe por sua pura e livre graça e vontade, e não porque ele prevê quem irá crer. A eleição de Deus baseia-se em sua soberania e liberdade, e não em sua presciência como Claudionor erroneamente afirma. Ele não escolhe porque sabe quem vai crer. Pelo contrário, ele sabe quem vai crer porque ele já escolheu. A fé é decorrente da eleição graciosa e não o contrário: "Logo, tem ele misericórdia de quem quer e também endurece a quem lhe apraz" (9.18).

Agora, o apóstolo defende o senhorio de Deus diante do problema de Israel. A pergunta que surge é: como pode Deus culpar os homens se seu decreto é irresistível? A resposta de Paulo é que a criatura não pode discutir com o Criador sobre suas decisões: "Quem és tu, ó homem, para discutires com Deus?! Porventura, pode o objeto perguntar a quem o fez: Por que me fizeste assim? Ou não tem o oleiro direito sobre a massa, para do mesmo barro fazer um vaso para honra e outro, para desonra?" (9.20-21). Se em algum momento Deus usou de misericórdia e paciência (9.22-24), isso é decisão livre e soberana de sua parte.

Surge a pergunta, levantada por vários intérpretes, sobre exatamente quem são os objetos da predestinação nesse texto. Alguns teólogos acreditam que as afirmações de Paulo a respeito da predestinação não devem ser aplicadas a pessoas enquanto indivíduos, desde que o contexto trata da eleição do Israel. Comentaristas

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arminianos geralmente apóiam a idéia de que Paulo está defendendo a predestinação de classes de pessoas, que seriam grupos eleitos. Deus elege a classe de todos que estão em Cristo para serem salvos, mas não determina quem faz parte dessa classe. Esta opção seria determinada pelo suposto livre-arbítrio dos indivíduos.

Tal interpretação não é adequada para lidar com Romanos 9. Notemos que o versículo 11 diz que a escolha de Jacó em vez de Esaú foi feita quando os dois "nem tinham praticado o bem ou o mal (para que o propósito de Deus, quanto à eleição, prevalecesse, não por obras, mas por aquele que chama)". Isto foi feito para evitar que as boas obras entrassem na equação. Em outras palavras, a escolha de Deus não tem nada a ver com o que os dois fariam. Em nenhum momento são mencionados grupos ou classes de pessoas, mas sim os nomes dos dois indivíduos.

Além disso, mesmo que admitíssemos que a eleição de grupos esteja em vista aqui, a presciência de Deus exigiria que os indivíduos também fossem incluídos. É impossível que Deus escolha uma classe de pessoas sem saber precisamente quais serão os indivíduos que comporão esta classe. Seu conhecimento exaustivo do futuro garante isto. A escolha da classe é igual à escolha das pessoas, a não ser que o conhecimento de Deus do futuro seja negado. Para evitar essa conclusão, alguns arminianos, atualmente, têm negado este conhecimento, ao advogar o teísmo aberto.

Como Paulo escreveu: "Irmãos, reparai, pois, na vossa vocação; visto que não foram chamados muitos sábios segundo a carne, nem muitos poderosos, nem muitos de nobre nascimento; pelo contrário, Deus escolheu as coisas loucas do mundo para envergonhar os sábios e escolheu as coisas fracas do mundo para envergonhar as fortes; e Deus escolheu as coisas humildes do mundo, e as desprezadas, e aquelas que não são, para reduzir a nada as que são; a fim de que ninguém se vanglorie na presença de Deus. Mas vós sois dele, em Cristo Jesus, o qual se nos tornou, da parte de Deus, sabedoria, e justiça, e santificação, e redenção, para que, como está escrito: Aquele que se gloria, glorie-se no Senhor" (lCo 1.26-31).

O arminianismo e o catolicismo romano concordam essencialmente no que diz respeito à doutrina da eleição. A teologia reformada e o arminianismo são sistemas mutuamente excludentes. Esses sistemas vão além dos cinco pontos: na verdade são cosmovisões que têm implicações para todas as áreas da vida. Não é possível assumir uma posição de meio-termo entre esses dois sistemas, sem aceitar as graves contradições lógica que se seguem. Muitos batistas não afirmam os quatro primeiros pontos dos Cânones de Dort mas ainda querem acreditar na idéia da perseverança dos santos, ou seja, de que o cristão uma vez recebendo a salvação, permanecerá salvo, porque a Bíblia ensina isso claramente entretanto, se é tão importante acreditar que a dignidade humana depende de o ser humano ter o livre-arbítrio, no sentido arminiano, por que nós o temos antes da salvação, mas não depois da mesma? É racional acreditar que Deus nos rouba de um elemento da nossa humanidade essencial, depois de sermos salvos? Mas se ainda conservamos o livre-arbítrio, neste sentido depois da salvação, não existe razão nenhuma que impeça que o cristão rejeite a Cristo e venha a cair da graça. O problema fica mais difícil ainda porque, se existe o livre-arbítrio segundo a definição arminiana, então, mesmo depois de uma eternidade no céu,

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qualquer cristão poderia escolher pecar e ser lançado no inferno. Ou será que Deus permitiria que tal pecador permanecesse no céu?

Os elementos mutuamente excludentes brotam de meus pressupostos incompatíveis. Para os arminianos, o livre-arbítrio é uma causa sem causa, ou seja, é o poder absoluto de fazer escolhas contrárias e indeterminadas. Para a teologia reformada, a livre agência é a capacidade que a pessoa tem de fazer escolhas sem coerção, de maneira consistente com a sua natureza e os seus desejos; vontade é condicionada e determinada por uma infinidade de fatores psicológicos, físicos e espirituais, todos os quais, no final, são ordenados não pelo acaso, mas pelos propósitos soberanos de Deus.

Apresenta-se, então, a importante pergunta: por que Deus escolheu certas pessoas dentre as demais, para torná-Ias membros do corpo de Cristo? Essa pergunta tem recebido duas respostas que se opõem entre si. O arminianismo ensina que Deus escolheu certos indivíduos porque sabia de antemão que eles creriam em Cristo. A teologia reformada insiste que a única razão da eleição de Deus é o amor divino soberano e livre. Isto é, desde a eternidade, Deus viu os objetos de sua eleição em Cristo. Segundo o arminianismo, o fundamento da eleição reside no homem. Segundo os reformadores, o fundamento da eleição reside em Deus. Dito de outro modo, o arminianismo sustenta que a fé é a base para a eleição, enquanto que a teologia reformada sustenta que a fé é o fruto da eleição graciosa e também sua prova.

Claudionor cita para tentar derrubar a teologia reformada é João 3.16. O versículo diz que "para que todo aquele que nele crê, não pereça". Claudionor interpreta isso como se qualquer pessoa, por sua própria vontade e poder, pudesse crer em Jesus quando bem quisesse. O problema é que a construção no grego não exige tal interpretação. O versículo não diz que toda e qualquer pessoa tem o poder de crer no evangelho. O versículo diz apenas que existe uma classe de pessoas, aquelas que nele crêem (o particípio substantivo, [pisteuon]), e que nenhuma delas perecerá. O versículo não explica como essas pessoas conseguiram fazer parte da classe daquelas que crêem.

Claudionor diz claramente que a eleição pode ter em vista indivíduos específicos, mas isso acontece porque Deus pode prever quem receberá o evangelho por seu livre-arbítrio. De modo geral, baseiam-se em Romanos 8.29: "Porque os que dantes conheceu também os predestinou". O argumento se desenvolve aproximadamente da seguinte maneira: Deus previu aqueles que creriam em Cristo, elegendo-os, portanto, para a vida eterna. Claudionor diz que 1Pedro 1.2, faz com que a predestinação esteja fundamenta da na presciência.

De fato, esses versículos colocam a presciência logicamente antes da predestinação. Não obstante, eles não declaram que o que é pré-conhecido seja a fé das pessoas. Isto é uma inferência que não se encontra nesses textos. Os dados bíblicos apóiam a conclusão de que as expressões "os que de antemão conheceu" (proginosko [Rm 8.29]) e "presciência" (prognosis [IPe 1.2]) referem-se a um povo, e não a qualquer ação desenvolvida pelo povo. A noção de que Deus vê de antemão a fé

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dessas pessoas, e assim as escolhe para serem salvas, não se encontra nos textos de Romanos 8.29 e 1Pedro 1.2, nem em nenhum outro lugar da Bíblia. O texto simplesmente diz: "os que de antemão conheceu" e assim por diante. Como mostrei proginosko e prognosis têm o sentido da palavra hebraica yāda " que significa "conhecer" e tem a conotação de um relacionamento pessoal. É utilizada com esse sentido em Romanos 11.2. Deus conhece a Israel, ou seja, ele tem um relacionamento pessoal com Israel, como foi dito em Amós: "De todas as famílias da terra a vós somente conheci" (Amós 3.2). Isto independente de qualquer ação, boa ou má. Deus os "conheceu" no sentido de que os amou e escolheu para serem dele. É assim que Deus predestinou seus eleitos. O verbo proginosko também aparece em 1Pedro 1.20, em relação à predestinação da expiação de Cristo. Portanto, proginosko e prognosis, em Romanos 8 e 1Pedro 1, devem ser entendidos no sentido de ter um relacionamento anterior. Isso é uma indicação do amor de Deus pelos eleitos, os quais ele escolheu.

Wayne Grudem destaca outra questão:

A idéia de que Deus predestina algumas pessoas a crer, baseado no conhecimento prévio da fé que terão enfrenta ainda outro problema: após cuidadosa reflexão, esse sistema aniquila qualquer liberdade real do homem. Do ponto de vista desse sistema, Deus pode examinar o futuro e ver que a pessoa A vai exercer fé em Cristo, e que a pessoa B não vai exercer fé em Cristo; então esses fatos já estão fixados, já estão determinados. Se temos por verdadeiro que Deus conhece o futuro (o que tem que ser), então é absolutamente certo que a pessoa A crerá, mas não a pessoa B. Não há a possibilidade de o desdobramento da vida delas ser diferente disso. Portanto é legítimo dizer que o destino delas está ainda assim determinado, pois não poderia ser de outra maneira. Mas pelo que são esses destinos determinados? Se são determinados pelo próprio Deus, então no final das contas não temos mais a eleição baseada no conhecimento prévio da fé, mas antes na soberana vontade de Deus. Mas se esses destinos não são determinados por Deus, então quem ou o que os determina? Certamente nenhum cristão diria que algum outro ser poderoso além de Deus controla o destino das pessoas. Portanto, parece que a única solução alternativa possível é dizer que tudo é determinado por alguma força impessoal, algum tipo de destino que atua no universo, fazendo com que as coisas sejam do jeito que são. Mas que tipo de benefício isso traz? Estaremos assim sacrificando o fato de Deus ter-nos eleito pelo seu amor por um tipo de determinismo, uma força impessoal, e dessa forma não mais dando o crédito principal a Deus pela nossa salvação.

Outra razão porque não resolve dizer que Deus previu aqueles que acreditariam encontra-se no fato de que a eleição ocorreu antes de fé. O texto de Atos 13.48 toma esse ponto claro: "e creram todos quantos estavam ordenados para a vida eterna". Esse versículo diz que a causa da fé (a palavra "crer", [pisteuo] é a forma verbal do substantivo "fé", ([pistis]) foi o fato de que aqueles que creram foram ordenados a crer. Além disso, dizer que exercitamos fé ao receber a Cristo e que Deus previu essa fé e, portanto, nos elegeu, somente nos leva um passo a mais para trás;

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pois onde conseguimos encontrar a fé e exercitá-Ia? As Escrituras fornecem a resposta: “É dádiva de Deus, não de nós mesmos" (Ef 2.8). Se a fé é dom de Deus, logo, o pecador só tem fé porque Deus o escolheu. Finalmente, nossa exegese de João 10.26 mostrou que o próprio Jesus atribuiu a falta de fé entre os judeus ao fato de que eles não eram ovelhas. Se o arminianismo fosse correto, Jesus deveria ter dito: "mas vocês não são minhas ovelhas porque não crêem", mas ele disse exatamente o contrário: "Mas vós não credes, porque não sois das minhas ovelhas". Isso mostra que a eleição vem antes da fé. A fé não é uma obra humana, mas sim dom de Deus. Ela é dada às pessoas que Deus escolheu anteriormente.

Grudem diz:

Considerando que no final das contas algumas pessoas resolverão aceitar Cristo e outras não, a pergunta é: 'O que as faz divergir nesse ponto?', isto é, o que no final das contas faz a diferença entre os que crêem e os que não crêem? Se nossa resposta é que no final das contas o que as faz divergir está baseado no que Deus faz (a saber, sua eleição soberana dos que seriam salvos), então vemos que a salvação no seu nível mais fundamental baseia-se exclusivamente na graça. Por outro lado, se respondermos que a diferença principal entre os que são salvos e os que não são está em algo no homem (isso é, a inclinação ou a disposição para crer ou não), então a salvação no final das contas depende de uma combinação de graça e capacidade humana. (...) Mas uma vez que comecemos a pensar desta maneira, então diminuiremos seriamente a glória devida a Deus pela nossa salvação.

O exemplo mais nítido que temos na Bíblia sobre a presciência de Deus e a salvação não oferece o resultado que Claudionor deseja. Notamos a declaração de Jesus, de que se tivessem sido feitos os milagres em Sodoma e Tiro que foram feitos em Cafamaum e Betsaida, o povo daquelas cidades teria se arrependido. Evidentemente, Deus, por sua presciência e conhecimento de tudo, sabia que essas pessoas receberiam a salvação se lhes tivesse sido oferecida (Mt 11.20-24). Mas por que, então, a salvação não lhes foi oferecida? Por que Deus não enviou ninguém para pregar e fazer os milagres necessários para conseguir a salvação deste povo, se é verdade que Deus dá tal oportunidade a todos que ele sabe que o receberiam? Parece que este exemplo não se encaixa com a interpretação de Claudionor da eleição.

Alguns arminianos respondem que a eleição é para o serviço ou as boas obras, mas não para a salvação. Mas não adianta dizer que Deus nos elegeu por ver algo que faríamos, sem incluir a salvação. A eleição de Jeremias e de Paulo para o serviço incluiu também a eleição para a salvação - "Pois somos feitura dele, criados em Cristo Jesus para as boas obras, as quais Deus de antemão preparou para que andássemos nelas" (Ef 2.10).

Vários versículos, como Romanos 10.11-13, são utilizados pelos arminianos para argumentar que a fé em Cristo é igualmente possível para todos, por causa do livre-arbítrio. O versículo 13 diz que todos, ou seja, quaisquer pessoas que invocam o nome do Senhor, serão salvos. Segundo os arminianos, a palavra "todo" é universal, e

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mostra a possibilidade de que qualquer pessoa possa crer em Jesus. Por outro lado, devemos notar que a teologia reformada não nega esta verdade. A fé reformada explica que somente os eleitos invocarão o nome do Senhor com sinceridade. Os outros jamais desejarão se arrepender e invocar o nome de Cristo. O versículo não apóia o arminianismo, porque o texto não diz por que algumas pessoas crêem e outras não.

É importante que seja entendido que a teologia reformada não nega que quem quiser possa receber a Jesus. Muito pelo contrário, ela compartilha a confiança de que quem quiser pode vir ao Senhor Jesus, e que Jesus, de forma alguma, rejeitará aquele que venha a ele. O que o calvinista está dizendo é que a pessoa que não recebe a Jesus não deixa de vir exatamente porque não queira vir. Deixa de vir por causa da sua natureza pecaminosa pois ela nunca vai querer e nem pode querer receber a Jesus, a não ser que receba primeiro um novo coração. Por isso, é necessário, primeiro, a predestinação dos eleitos, que, depois, recebem gratuitamente o dom de fé, no contexto da obra da regeneração.

Uma outra objeção diz que, na eleição, Deus é parcial e faz acepção de pessoas. Devemos notar que todos os textos que falam de Deus não fazendo acepção de pessoas lidam justamente com a questão social (cf. Dt 10.17; Jó 34.19; At 10.34; Rm 2.11; Ef 6.9; CI 3.25; Tg 2.1: 1Pe 1.17). As Escrituras ensinam que Deus não faz acepção de pessoas porque ele não escolhe um e rejeita outro, com base em circunstâncias externas como etnia, nacionalidade, riquezas, poder, nobreza etc. Pedro diz que Deus não faz acepção, já que ele não faz distinção entre judeus e gentios. Sua conclusão, após ter sido enviado para pregar a Cornélio, foi: "Reconheço, por verdade, que Deus não faz acepção de pessoas; pelo contrário, em qualquer nação, aquele que o teme e faz o que é justo lhe é aceitável" (At 10.34-35). Através de toda sua história, os israelitas creram que, como povo, eles eram objeto exclusivo do favor de Deus. Uma leitura cuidadosa de Atos 10.1-11.18 revelará quão revolucionária era a idéia de que o evangelho haveria de ser pregado aos gentios também.

Paulo disse: "Glória, porém, e honra, e paz a todo aquele que pratica o bem, ao judeu primeiro, e também ao grego. Porque para com Deus não há acepção de pessoas" (Rm 2.10-11). E novamente: "Dessarte, não pode haver judeu nem grego; nem escravo nem liberto; nem homem nem mulher; porque todos vós sois um em Cristo Jesus". Logo, Paulo acrescentou que não são os judeus como raça, mas sim aqueles que são de Cristo os que, no sentido mais profundo, pertencem à "linhagem de Abraão" e são "herdeiros segundo a promessa" (GI 3.28-29). Em Efésios 6.5-9, Paulo ordenou que os servos e senhores se tratassem com justiça, porque Deus, que é o Senhor de ambos, não faz acepção de pessoas. E em Colossenses 3.25 incluiu igualmente nesse conceito as relações entre pais e filhos e entre esposas e esposos. Tiago diz que Deus não faz acepção de pessoas porque não faz distinção entre rico e pobre, nem entre aqueles que usam vestes finas e os que se vestem com simplicidade (Tg 2.1-9). O termo "pessoa" nestes versículos significa não o homem interior, ou a alma, mas a aparência externa, que, com tanta freqüência exerce influência em nossos julgamentos. Portanto, quando as Escrituras afirmam que Deus não faz acepção de pessoas, isto não significa que Deus trate a todos por igual, senão que a razão pela

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qual ele salva um e rejeita outro não é porque um seja judeu e o outro gentio, ou porque um seja rico e o outro pobre.

A esse respeito, Deus pode dizer o mesmo que o proprietário, em resposta, disse: "Amigo, não te faço injustiça; não combinaste comigo um denário? Toma o que é teu, e vai-te; pois quero dar a este último tanto quanto a ti. Porventura não me é lícito fazer o que quero do que é meu? Ou são maus os teus olhos porque os meus são bons?" (Mt 20.13-15). Deus não pode ser acusado de parcialidade em sua escolha graciosa, porque isto só ocorre quando uma parte tem o que exigir da outra.

Berkhof diz:

Se Deus devesse perdão ao pecado e a vida eterna a todos os homens, seria injustiça se Ele salvasse apenas um número limitado deles. Mas o pecador não tem, absolutamente, nenhum direito ou alegação que possa apresentar quanto às bênçãos decorrentes da eleição divina. De fato, ele perdeu o direito a essas bênçãos. Não somente não tem direito de pedir contas a Deus por eleger uns e omitir outros, como também devemos admitir que Ele seria perfeitamente justo, se não salvasse ninguém.

A afirmação de que Deus é obrigado a oferecer o perdão de pecados, mediante Cristo, a todo o mundo, não tem o apoio da Escritura, visto que transforma a graça em dívida, envolvendo o absurdo de insinuar que se o juiz não oferece perdão ao criminoso, contra quem lavrou sentença condenatória, não o trata com eqüidade.

Em anos recentes foi lançado um livro de Norman Geisler, que defende uma posição essencialmente arminiana, Eleitos, mas livres. O título não deve iludir aqueles que buscam um estudo realmente sólido sobre este assunto. Além de sérios problemas teológicos, históricos e exegéticos, o autor, ao se definir como um "calvinista moderado" (em contraposição aos "calvinistas extremados", entre eles R. C. Sproul e John Piper que, na verdade, são os verdadeiros calvinistas históricos), acabou por redefinir a terminologia teológica que é reconhecida comumente por todos os lados do debate.

Em lugar de tornar a discussão mais clara, Geisler a nublou, o que não serve a nenhum propósito, e, na pior das hipóteses, engana aqueles que são menos instruídos nesta discussão. O mais desconcertante é que seu livro é embalado por um discurso pretensamente lógico e filosófico. Do calvinismo histórico, Geisler só mantém a doutrina da perseverança dos santos - mas isto, quando muito, é um arminianismo inconsistente. Ele teria prestado um grande serviço a seus leitores se admitisse simplesmente sua posição, em lugar de confundir o assunto com definições artificialmente impostas.

Não há dúvida de que os “evangélicos” de nossas congregações (falos a respeito as assembléias de Deus) encontram-se em um estado de perplexidade e instabilidade. Em assuntos como a prática do evangelismo, o ensino da santidade, a edificação da vida da igreja local, o cuidado do pastor pelas as almas e o exercício da

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disciplina, há evidencias de insatisfação generalizada quanto ao caminho que se deve seguir. Trata-se de um fenômeno complexo, para o qual muitos fatores tem contribuído; mas, se formos à raiz do problema, verificaremos que todas essas perplexidade devem-se, principalmente, ao fato de havermos perdido o evangelho bíblico. Sem perceber isso, temos barganhado esse evangelho durante quase cem anos por um produto substitutivo que, embora pareça bastante semelhante nos detalhes, é algo completamente diferente no todo. Eis as nossas dificuldades: o produto substitutivo não atende aos fins para os quais o evangelho autêntico provou-se, nos dias passados, tão poderoso. O novo evangelho falha patentemente em produzir reverencia profunda, arrependimento profundo, humildade profunda, um espírito de adoração, um cuidado com a igreja. Por quê? É minha opinião que a razão está em seu próprio caráter e conteúdo. Ele falha em tornar os homens centralizados em Deus nos seus pensamentos e tementes a Deus em seus corações, porque não é isso que ele está visando fazer principalmente. Uma forma de estabelecer a diferença entre o novo e o velho evangelho é dizer que o primeiro está excessiva e exclusivamente preocupado em “ajudar” o homem - a ter paz, conforto, felicidade, satisfação – e pouquíssimo preocupado em glorificar a Deus. O velho evangelho foi útil também – muito mais, de fato, que o novo – porém incidentalmente, por assim dizer, pois sua primeira preocupação sempre foi glorificar a Deus. Ele era sempre e essencialmente uma proclamação da soberania divina em misericórdia e julgamento, uma convocação para inclinar-se a adorar a Majestade do Todo Poderoso Deus, de quem o homem depende para todo o bem, tanto em natureza como em graça. Seu centro de referência era inequivocamente Deus. Mas no novo evangelho, o centro de referência é o homem. Isso equivale a dizer que o velho evangelho era religioso numa forma que o novo evangelho não é.

Enquanto o principal objetivo do velho evangelho era ensinar os homens a adorar a Deus, a preocupação do novo parece limitada a fazê-los se sentirem melhor. O assunto do velho evangelho era Deus e suas atitudes para com os homens; o assunto do novo é o homem e a ajuda que Deus dá a ele. Há um mundo de diferença. A completa perspectiva e ênfase da pregação do evangelho têm se mudado

Esta mudança de interesse deu origem a uma mudança de conteúdo, pois o novo evangelho tem, com efeito, reformulado a mensagem bíblica nos supostos interesses de ser “prestativa”. Portanto, os temas da incapacidade do homem natural para crer, da eleição gratuita de Deus como a principal causa da salvação, e de Cristo morrer por Suas ovelhas, não são pregadas. Essas doutrinas, seria dito, não são “prestativas”; elas levariam os pecadores ao desespero, sugerindo-lhes que não está em seu próprio poder o serem salvos através de Cristo. (A possibilidade de que tal desespero poderia ser salutar não é considerada; é tomada como ponto pacífico que não pode ser, porque é muito destrutiva para a nossa auto-estima). Seja como for, o resultado dessas omissões é que parte do evangelho bíblico esta agora sendo pregada como se fosse o todo desse evangelho; e uma meia-verdade disfarçando-se de verdade completa torna-se uma inverdade completa. Dessa forma, apelo aos homens como se todos eles tivessem habilidade de receber Cristo a qualquer momento; falamos de Sua obra redentora como se Ele não tivesse feito nada mais, ao morrer, do que tornar possível que nos salvemos a nós mesmos simplesmente por cremos; falamos do amor de Deus como se não fosse mais do que uma prontidão geral para

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receber qualquer um que se volte e creia; e nós descrevemos o Pai e o Filho, não como soberanamente ativos em atrair pecadores a Si mesmo, e sim como que esperando, impotentes, “à porta de nossos corações” para que Os deixemos entrar. É inegável que pregamos assim; talvez seja isso que nós realmente cremos. Mas é necessário dizer, com ênfase, que esse conjunto de meias-verdades torcidas é algo diferente do evangelho bíblico. A Bíblia está contra nós quando pregamos dessa maneira; e o fato de que tal pregação tem se tornado quase prática padrão entre nós, mostra apenas quão urgente é que revisemos este assunto. Recuperar o velho autêntico e bíblico evangelho, e fazer com que nossa pregação e prática esteja somente de acordo com esse evangelho, são, talvez, uma premente necessidade.

Sola Dei Gloria
 
Fonte: ANDERSON COSTA - ESCRAVO DA GRAÇA

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